quinta-feira, maio 18, 2006

Matinta Pereira - Pensando em Molecagens

Matinta Pereira estava fumando seu pito pensando em que molecagem fazer, afinal seu trabalho era atormentar esses humanos acomodados, e ver se alguém acordava pra imensidão da floresta. Matinta se orgulhava de seus métodos um tanto mais suaves que de seus pares, a Cuca, o Boitatá, Curupira, e aquela Mula desmiolada ou faziam assustar de vez os desalmados, ou os levavam para o fundo do Rio sem volta ou perdão. Matinta se considerava um “sofisticado” nessa questão, e ria consigo mesmo de pensar na beleza de seus métodos.

– He he he ! – ria Matinta, sentado no tronco e coçando seu único pé esquerdo
– Har har har ! – ria ainda mais consigo mesmo, e falava
– Uai mais si num tenho u direito quem podi dizê quiesse é isquerdo. Har har har!

Ria e pensava “esquerdo, direito coisa de gente humana que não ficava de pe nem se tivesse quatro patas”. O que Matinta falava parecia torto, por que quem vai entender coisa certa vinda de Matinta, ouvindo com ouvido torto que é coisa de gente humana. Mas Matinta pensava com a mente certa, por que sua mente nem era dele, era das coisas da floresta e das estrelas da noite, e essas coisas eram certas.

Às vezes ele ficava muito tempo pensando no que fazer para assustar alguém, meses até coçando seu pé, fumando seu pito, olhando e se movendo com estrelas e planetas, bebendo da chuva e respirando o ar. Meses num pensamento só, até as folhas que caíram virarem arvores de novo, até o rio pular de peixe, o que agora não acontecia muito...

Matinta não sentia tristeza, tambem não sentia raiva, seus sentimentos não eram de gente, eram mais coisa de anjo, mas anjo Matinta não era, tambem não era o Diabo, que era coisa de gente humana. Uma vez falando com a Onça, e a Onça andava sumida do mundo das coisas, só via por esses anos a fumaça da Onça andando pela floresta, uma lembrança. Uma vez falando com a Onça ela disse que essa gente humana agora, duns 500 anos pra cá, a achava com jeito do tal diabo, ou achavam que ela era só couro e coisa. A Onça se sentia triste, por que era forma desse mundo, nascida direto do chão, e a Onça se sentia triste, de virar só fumaça, de virar só lembrança na luz dum sol que já foi. A Onça, Matinta via, não reclamava de seu destino, toda gente que não é humana desse mundo aceita o que lhe vem por não ter luz para mudar seu destino. Destino é coisa de gente humana, e seria um lado bom, se Matinta pensasse se preocupando com o que é bom ou com o que é ruim. Bom e Ruim é para quem tem destino, para gente humana, pode ser que Matinta colocasse a coisa assim.

A Matinta cabia se lembrar do sol no couro da Onça viva, e se lembrar da conversa com coisa que sente, gente que não é humana, que não tem destino, só existência. Gente, coisa viva que desaparece de novo na massa do chão que foi criada, sem um suspiro de arrependimento ou um olhar de condenação.

A Onça quando falou, falava que seu tempo parecia encerrado, seu espaço a sufocava e já não se alegrava como antes pendurada em arvores ou almoçando macacos. Talvez fosse seu tempo de ficar na memória do chão e esperar que o rodo das estrelas lhe abrisse de novo espaço. A Onça não acreditava, pois acreditar é coisa tambem de gente humana, que nos olhos de gente humana não fosse diabo, não fosse só couro. Pois era só nos olhos de gente humana que a Onça podia ou não existir, e voltar a ser Jaguar, e voltar a ser Nagual...

Coçando seu pé esquerdo, e pensando ele ia muito longe, essa coisa de trás pra frente deixava de ser, e ele ia a todo lugar, até lugar que não era e podia ser. Nesse tempo ele buscava como assustar o Homem que dormia para que morresse de medo e acordasse no mundo real da vida das coisas, pensava em como enrolar o Homem para que se desenrolasse dos seus abafados véus de coisas e respirasse o ar da noite enorme. Seus olhos rodavam perdidos enquanto esperava que os planetas lhe dissessem.

Matinta em seu devaneio viu uma arvore alta no meio duma clareira, e de lá do céu meio aberto meio com nuvem apenas um chuveiro certo caia na arvore. Era noite e tinha gente em volta, gente humana que batia palma vendo a chuva certa só na arvore como uma maravilha, tinha uma luz como um facho que as iluminava s faces. No céu só o meio da nuvem se desfazia em água, e a nuvem tinha a forma duma lua crescente, e a água saia do meio. A boca aberta pela nuvem apontava pro norte, e a arvore não era dessas terras, era das que vieram de outras terras, pontudas e duras. A gente batia palmas em maravilha e o chuveiro parou, parecia mesmo que o resto das gotas subia de volta quando se fechou a torneira. Havia mais gente em volta, ou por perto, sem notar a maravilha, falavam entre si ocupadas e desatentas. Os olhos de Matinta acompanharam o resto do chuveiro que voltava para o alto e lá em cima, do centro donde vinha a água uma explosão muda consumiu o resto da nuvem, fuuumph! O céu ficou limpo e negro com pontinhos de estrelas, revelando uma figura que era como as linhas que uma criança faz para desenhar uma florzinha simples, linhas vermelho arroxeado, muito tênues, mas que davam para ver se você olhasse. Uma flor no céu, a mão dum Deus, um beijo do Cosmos, sutil, tênue, para quem quisesse ver. LOGOS. Logo se moveu, e quando o céu de repente ficou de novo nublado, Matinta se viu no meio da feira humana tendo que comerciar e trocar, sentindo que ia se esquecendo da maravilha, do beijo que tomou o céu, do chuveiro que escolheu a arvore. Matinta tentava contar a história e alguns ouviam o começo e não o fim, outros o fim e não o começo. E ninguém exceto os que batiam palmas em volta da arvore, havia testemunhado, como Matinta, a maravilha...

O que isso queria dizer a Matinta não importava, nem que houvesse ficado tão envolvido na cola das tramas das gentes humanas a ponto de quase sentir seu desespero, sua pressa, suas “razões”. Matinta não carecia de explicações, ou de significados, ele olhava e via e não tinha bolso pra guardar nada. Se as coisas vinham pra ele inteiras muito bem, se vinham em partes, tambem.

E Matinta foi ficando na floresta, até que lhe cresceu musgo em cima e o cupim lhe encostou uma casa às costas. Foi quando se deu conta que como a Onça ele tambem tinha virado fumaça. É verdade que Matinta nunca fora lá duro feito pedra, só que feito dum nada tambem não era, ou era?

Claro que era, já estava sentado lá há tanto tempo que pensava ter virado coisa deste mundo, e fumaça feito a onça...

Matinta piscou e num segundo já estava de novo fazendo uma maldade, pode ser que nem tenha parado e tudo isso não tenha acontecido ainda. Matinta não é feito de coisa...

Har har har – matinta ria – num sô feito di coisa ninhuma....e sô feito da mesma coisa que são feita as coisa antes qui elas fossem feita...

Quem disse que Matinta se importava em fazer sentido?

Har har har!

Por Antonio Augusto Casari Kós 18/05/06

quarta-feira, maio 17, 2006

Temor a Deus, meu Pai e outros assuntos entremeados

Não consigo me livrar das preocupações sobre o ambiente que me cerca. Pensar no crime organizado no Planalto, no crime organizado que ataca como guerrilha em São Paulo, na dissolução do valor econômico dos meus proventos e na percepção de diminuição da minha liberdade, causa uma angustia estranha, um desgosto, uma sensação de que o mundo finalmente enlouqueceu e estes são os fins dos tempos.

Antigamente, talvez nem tão antigamente, existia o conceito de temor a deus. Este conceito foi sendo abandonado, justificando-se sua obsolescência de vários modos. A ciência (falando de modo genérico) resolveu o problema não acabando com o temor, mas acabando logo de vez com Deus – acho que o temor ficou. Outros preferiram acabar com o temor argumentando que Deus afinal é um cara bonzinho e não tem nada pra ser temido, e encheram seus templinhos com almofadinhas, incensos e florzinhas secas. Pintaram uma carinha alegre naquilo que não se entende e usaram como decoração.

Dá para entender por que a idéia de temer a Deus não é POP, tanta repressão, a gente fica querendo um alivio, ao menos vindo lá do alto. Me dei conta que a 2ª guerra acabou apenas 17 anos antes de eu nascer, 17 anos tenho de historia com minha esposa e parece que foi ontem. Claro Deus é Amor, mas o Amor de Deus, quem agüenta? Aquela luz poderosa que entra em todos os cantinhos e efervesce toda a sujeira, que nem Alka Seltzer só que infinitamente mais forte...

E tem tambem a pressão da modernidade, somos todos descolados e ninguém é de ninguém, pra que ter temor do Barbudão? Eu passo pra outra, sou mais EU, me garanto.

Temor a Deus, que piada...

Ou é mesmo?

Eu não temia o meu Pai, nunca me bateu, e foram tão poucas as vezes que ele falou alto comigo que eu nem lembro se de fato ele falou alto comigo. E houve vezes que eu o desafiei, abusado e adolescente, precisando saber quem eu era. Apesar disso a imagem dele, apenas um homem, é uma coisa enorme em minha mente, uma presença constante em meu espírito, e me assombra com quem ele era, e com quem eu podia ser pelos seus olhos. Talvez eu temesse o meu Pai, e a única coisa “assustadora” que ele jamais fez foi me amar, cuidar de mim, patrocinar meus sonhos.

Essa gente ai, que mata por ordem de presidiário criminoso, que rouba como se fosse o fim do mundo e a tábua da salvação fosse uma mala de dólar não tem medo de nada, não dá satisfação a ninguém. Seus espíritos estão trancados em cavernas escuras aonde tentam se esconder da luz e do amor do Pai, de Deus, da verdade do Tão, ou como se chame nossa origem. Essa gente que insiste no erro, mesmo que errar seja em nossa esfera uma coisa relativa, erra por se apartar da verdade e da vida, erra por se condenar a uma existência miserável e por criar uma terra devastada.

Sua dor ressoa e nos assusta, em sua confusão nos agridem, roubam, e matam. É sinal dos tempos? É nossa própria dor e medo, espelhada, magnificada, distorcida? É algo que passará, como tudo passa, e eventualmente pássaros voltarão a cantar, flores a florir, crianças a brincar? Ou é algo com o que eu tenho que lidar, no meu intimo e no meu mundo, para que este continue e tenha uma chance?

Meu Pai era só um homem, e como eu ficava confuso quando lhe fazia de diversos modos essas mesmas perguntas. Ele tentava apaziguar o meu medo e minha dúvida, e tentava ser mais que apenas um homem, mas não conseguia e era injusto que eu o quisesse infalível. Eu não sabia mais a quem perguntar, a quem recorrer. Da minha própria caverna me irritava com suas respostas, me antagonizava às suas soluções que sabia serem incompletas, enganadas, relativas.

Meu Pai não podia me proteger desse temor diante da amplitude do horizonte desconhecido, me resguardar da maturidade e responsabilidade da consciência, me saciar uma fome imortal. Ele só podia estar comigo, mortal, numa existência compartilhada, e ser quem foi, meu Pai.

Essa gente que ai esta, roubando e matando não é diferente, só que enlouquece diante do vazio por traz desse horizonte concreto. Batalha por uma pega, uma alça na borda dum mundo chato, que os impeça de cair num abismo. Engalfinham-se e se empilham para ver quem está mais alto, bocas cheias de carniça, mentes cheias de fumaça e solventes. Pobres, destemidos, nada respeitam, nada lhes dá a noção de seus limites, nada lhes indica suas possibilidades ou os faz sonhar com seus destinos eternos. Pobres, desconhecem o medo que sentem da inevitabilidade de seu envelhecimento. Ignoram o desperdício de seus talentos, desprezam a dádiva da existência que lhes foi concedida. A saída do labirinto ou os ilude ou não os apetece.

A pressão aumenta como um maçarico, inescapável. Luz inexorável, que revela e purifica. Os segredos expulsos de suas tocas, todas as mascaras e muletas dissolvidas. Quem vai sobrar de pé, quem vai poder dar a mão e mostrar sua própria face?

Mas isso ainda é o meu desgosto falando, meu desejo que haja um julgamento e uma separação de joio e trigo, uma justiça, um governo no meio de tanta desgovernança, e um futuro para nossa raça, para a vida, para o mundo. Esse julgamento está acima de minha capacidade, e de minha inteligência. Apontar o dedo, jogar a primeira pedra, se somos todos um, vai me pegar na cabeça. Se eu estivesse acima disso tudo, estaria acima disso tudo e não estaria aqui... (em excelente, e indiscutível, lógica lusa). Por isso só o que eu consigo extrair dos meus neurônios e suas parcas e chamuscadas sinapses, sem ficar maravilhado demais com minha própria voz, é que este é o Meu Mundo, interno e externo e eu tenho que trabalhar para fazê-lo melhor, fazendo-me melhor, a todo risco, a toda prova. O Horizonte que me assusta, e me atemoriza, é o mesmo Horizonte do Reino que o Pai me preparou, é o futuro infinito que me aguarda, é o passado interminável que me apóia. Tudo isso, em se tratando desse mundo de aprendizado, vai passar, eu vou, você vai; malas, dólares, cuecas e metralhadoras mais ainda.

Ainda não é a minha hora, mas é sempre bom saber que meu pai vai estar lá, como sempre esteve, quando puxarem o meu tapete, quando se abaixar a cortina, e eu espero estar lá no momento certo, de algum modo, para você.