quarta-feira, maio 05, 2010

Templo

“Ao longo de minhas muitas vidas e até esse momento todos os méritos que tenha alcançado ofereço para o bem estar dos seres sencientes.”

Muitas vidas, longamente, dando cabeçada, insistindo nas mesmas coisas, tecendo o Karma, plantando sementes. Talvez no meio disso algum mérito, talvez no meio disso alguma ação apontando para a lucidez.

Tateando, se norteando por coisas impermanentes, aprendendo devagar, talvez. Se perdendo, se achando por que se perdeu. Vidas que pulsam hoje, aqui nos meus atos, nos meus modos.

Quanta coisa aconteceu, o quanto demorei para chegar aqui e pensar em méritos, o quanto demorei para ver na minha frente, claro, o límpido o ensinamento do Darma, e encontrar a Sanga nascente da generosidade do Lama. O quanto demorei para encontrar isso, e entender essa virtude, e também o quão fugaz e infinitamente frágil é minha atenção sobre essas jóias. Tão fácil esquecer, tão fácil adormecer... De novo às manivelas, botões e alavancas...

Ao longo de muitas vidas busquei o terreno, me perdi em charcos, em guerras, em paixões, em idéias confusas e grotescas. Cerquei o que não tinha limites, protegi o que me veio de graça. Ao longo de minhas muitas vidas e depois delas, hoje, nesse “hoje” fugaz, vejo um templo. Um templo que me lembra minha casa verdadeira, um templo que entendo só existirá nesse mundo de esforço com a dedicação de muitas vidas por vir.

Ele se funda na tranqüilidade alem desse tempo, e não virá do amanhã, nem de coisas que tenha feito, virá de muitos nascimentos, muitas mortes. A breve ansiedade de conquista nessa vida não é suficiente nem para o primeiro tijolo glorioso, nem meus ossos se prestam para erguer a primeira relíquia para colocar em sua estupa. Sua sustentação e presença nascem de raízes tão profundas que assombram minha existência efêmera.

Vejo janelas que do alto olham um mundo diferente do nosso, pois delas miram olhos que não são os nossos olhos de hoje. Vejo o Darma falando em novas formas, e bandeiras desconhecidas e fantásticas tremulando no vento quente. Vejo pássaros coloridos, papagaios e tucanos, que sobre o céu não deixam marca de seu vôo. Vejo o Boitatá, Curupira e o Saci sabendo e ensinando coisas que não imaginávamos. Vejo novos livros e gentes livres, ou que ao menos entendem a liberdade. Pois um templo vibrante e novo sempre esteve lá, mas agora ouvimos seus sinos, suas trombetas e tambores, vemos suas flâmulas, e olhamos o horizonte imenso por seus caixilhos.

Um Centro de Darma, com um Templo no meio, trazendo de volta a energia, de novo, de novo, de novo. Um assento perfeito, um eixo e ritmo para a Mandala do Lótus, de novo, de novo, retornando. Muitas vidas, muitos tijolos.

Um dia eu era um monge recluso, noutro uma mãe distante, noutro um escravo, noutro prostituta. Um dia eu comi até morrer, noutro morri sem comer, poucos dias eu dei a mão, poucos também encontrei meus olhos noutros. Num dia fui filho, noutro pai, amante, bufão, traidor. Poucos me sentei, menos ainda respirei, e ainda menos vi.

Então quando imagino ser possível colocar um tijolo nesse templo, e quem sabe me lembrar de colocar ainda outro, e quem se atreve a sonhar, um terceiro, pode ser que um belo dia abra os olhos e me levante, e vendo tantos ali simplesmente entenda que não haviam muitos, só um belo dia a viver em todos.