A GEOGRAFIA SEMPRE VENCE
Veja - Paginas Amarelas - 17 DE DEZEMBRO, 2011
Entrevistado - IAN MORRIS
Por ANDRÉ PETRY, DE BOSTON
Autor de um livro excepcional, o historiador e arqueólogo fala das lições da história e prevê que o Ocidente está a menos de um século de perder a supremacia para a Ásia
"Temos um modo próprio de fazer as coisas. Somos movidos por ganância, preguiça ou medo"
Mesmo falando e escrevendo apenas em inglês, mesmo dando aulas em Stanford, mesmo tendo nascido na inglesa Stoke-on-Trent, e como tal ser herdeiro do primeiro império global, o historiador e arqueólogo Ian Morris, 51 anos, não caiu na armadilha de ver o mundo apenas através da lente anglo-saxônica. Num livro estupendo, Why the West Rules — For Now (Por que o Ocidente Domina o Mundo — Por Enquanto), Morris narra os últimos 15 000 anos da história humana entrelaçando biologia, sociologia e geografia, com destaque para a geografia, e explica por que impérios caem e o que o futuro nos reserva. "A geografia é a razão das mudanças mais profundas", diz. Mantido o atual compasso, ele arrisca: a Ásia vai superar o Ocidente em 2103. A seguir, sua entrevista a VEJA.
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Petry: O senhor afirma que a história humana tem três forças motrizes: a biologia, a sociologia e a geografia. Elas são igualmente relevantes?
Morris: São diferentes. A biologia não nos deixa esquecer que somos animais, só que símios inteligentes. Temos necessidades parecidas com as de outros animais e fazemos coisas semelhantes. A grande diferença está no modo como nos adaptamos ao mundo. Os demais animais se adaptam através da biologia, da evolução genética, que é extremamente lenta. Nós, com nosso cérebro grande, contamos com a evolução cultural. Quando acabou a última era do gelo, há 15 000 anos, todos os animais fizeram a mesma coisa, inclusive os humanos: alimentaram-se da repentina fartura de plantas e animais menores. Só que nós, mais por acidente que por esperteza, inventamos a agricultura. A população começou a crescer, surgiram as comunidades agrárias, inventamos as cidades, os estados, os impérios, e aqui estamos. A biologia explica por que estamos tentando melhorar nosso padrão de vida constantemente, mas não como fazemos isso. É onde entra a sociologia. Ela nos ensina que somos muitíssimo parecidos uns com os outros, não importa de que lugar do planeta viemos, não importa a cor da pele. Temos um modo próprio de fazer as coisas. Em geral, somos movidos por ganância, preguiça ou medo. Estamos sempre em busca do meio mais lucrativo, mais fácil e mais seguro de fazer as coisas.
Petry: A biologia e a sociologia explicam as semelhanças globais, enquanto a geografia explica as diferenças regionais?
Morris: Sim. A geografia determina em que lugares o nível de desenvolvimento será maior ou menor. Se colocarmos 500000 pessoas no Brasil e 500000 na Alemanha, elas vão se desenvolver de forma desigual porque estarão em locais distintos, diante de desafios diversos, e não porque brasileiros e alemães tenham diferenças de natureza biológica ou sociológica.
Petry: Então somos premiados com boa geografia, ou punidos com má geografia, e nada podemos fazer para interferir no nosso destino?
Morris: A geografia determina o nível de desenvolvimento, mas o nível de desenvolvimento, à medida que se materializa, provoca um efeito tal que acaba mudando o significado da geografia. A má geografia pode virar boa geografia.
Petry: Onde a má geografia está virando boa geografia hoje?
Morris: No Oceano Pacífico. A enorme extensão do Pacífico sempre foi uma barreira física, mas está se transformando numa imensa avenida. O Pacífico é gigantesco. Acabei de sobrevoá-lo ao ir para Hong Kong. São horas e horas dentro de um avião vendo mar, só mar. Mas o desenvolvimento dos transportes e das comunicações está encolhendo o Pacífico, e assim mudando seu significado. O Atlântico passou pela mesma mutação nos séculos XVIII, XIX e XX. O encolhimento do Pacífico começou depois da II Guerra, em 1945. É a principal razão da atual ascensão da Ásia. Com a redução das distâncias entre a Ásia e a costa oeste da América, as vantagens das economias asiáticas estão entrando em cena. Nas décadas de 70 e 80, vimos a explosão econômica do Japão, que depois tropeçou numa série de problemas. São acidentes de percurso, que acontecem a toda hora, pois a história não é linear. Mas as forças geográficas que operaram a favor do Japão há quarenta anos seguem em plena ação, favorecendo outras economias asiáticas.
Petry: Hoje, a principal corrente de pensamento atribui o progresso material e social à presença de instituições abertas e de valores democráticos numa sociedade. Isso não é mais relevante do que a geografia?
Morris: As instituições e os valores são essenciais para explicar o passado recente, mas, a longo prazo, as coisas são dirigidas por forças materiais mais profundas, especialmente a geografia. Não há dúvida de que os países do Atlântico Norte chegaram ao domínio global nos últimos 200 anos porque tinham sociedades mais abertas, instituições mais livres e sistemas legais de proteção da propriedade privada e dos direitos individuais. Por isso a Holanda e a Inglaterra foram os grandes poderes do século XIX, e não a Espanha ou Portugal. No entanto, para sabermos por que essas instituições mais livres floresceram na Holanda e na Inglaterra, e não na Polônia, na Itália ou no Império Otomano, temos de recorrer às forças materiais. A geografia foi o fator decisivo que alçou Portugal e Espanha à condição de líderes no descobrimento e na colonização das Américas. Os portugueses e espanhóis, como todo colonizador, saquearam suas novas possessões territoriais. Os ingleses, franceses e holandeses adorariam ter feito o mesmo. Mas, nas terras que hoje fazem parte do Canadá e dos Estados Unidos, a geografia era outra. Não havia mina de prata ou ouro, não havia império asteca ou inca. Na ausência dessas riquezas, os colonizadores da América do Norte precisaram encontrar outra saída, e criaram uma coisa nova: economias conectadas, economias complementares entre dois continentes, América e Europa. Trata-se de economia: baseadas no mercado, em torno da costa atlântica. Por sorte, esse tipo de economia funciona muito bem em países com instituições mais abertas. No século XVI, Holanda e Inglaterra já eram países um pouco mais abertos que Espanha ou Itália. Integradas ao comércio atlântico, essas instituições mais abertas e livres se revelaram adaptações perfeitas à economia de mercado. E desabrocharam.
Petry: A China virou a locomotiva do mundo, mas os chineses vivem sob um regime autoritá¬rio, com instituições fechadas. Dá para um país assim, impermeável a novas ideias, chegar ao topo do mundo?
Morris: A democracia, por ser um regime de liberdade e abertura, é muito superior em termos de geração de novas ideias. Mas simplesmente não sabemos se a ausência de democracia será um obstáculo intransponível para a China. Há cinquenta anos, parecia impossível ter um mercado financeiro capitalista num estado comunista de partido único. Mas os chineses mostraram que era possível adaptar um ao outro. Claro que, na prática, os chineses deixaram de ser comunistas. Dizem que são, mas não são, embora mantenham o regime de partido único. Quem hoje poderá dizer que eles não conseguirão compatibilizar a regra do partido único com alguma forma de mercado intelectual? O que posso dizer é que não será fácil.
Petry: Quando os regimes comunistas ruíram, surgiu a tese do "fim da história", que seria o triunfo final do capitalismo e da democracia liberal.A ascensão da China é a negação dessa tese?
Morris: No fim da década de 80, com a ascensão do Solidariedade na Polônia, a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, a maior parte do mundo concluiu que, num planeta tão conectado e rápido, só as democracias liberais seriam bem-sucedidas. Os chineses, vendo aqueles mesmos acontecimentos, e principalmente as manifestações na Praça da Paz Celestial, chegaram a outra conclusão, a de que aquilo tudo parecia a Revolução Cultural de duas décadas antes, e decidiram que não voltariam àquele caos sob hipótese alguma. Foi aí que se saíram com essa solução tão imaginativa de conjugar mercado capitalista com regime de partido único. Cederam ao capitalismo, mas, querendo ficar no poder, não cederam à democracia. Em 1930, muita gente concluiu que a saída eram os regimes totalitários. Pensava-se que o melhor eram países de extensão continental, industrialização pesada e processo de decisão centralizado. Ou seja: a saída era a União Soviética. Nessa época, o jornalista americano Lincoln Steffens (1866-1936) voltou da URSS e disse: "Eu vi o futuro, e ele funciona". Muita gente sensata e inteligente pensava assim. Pode ser que, dentro de meio século, as pessoas olhem para trás e vejam semelhanças entre 1930 e 1980. Em 1930, era o triunfo do totalitarismo. Estava errado. Em 1980, foi o triunfo da democracia liberal. Estará certo? Sem dúvida, as democracias ocidentais fecharam o século XX em posição de liderança. Mas não sabemos como será no XXI. Até agora, o pedaço que faz sucesso na experiência da China não é sua conversão à democracia, mas sua abertura ao capitalismo.
Petry: Com o epicentro da economia mundial se deslocando para a China, o Brasil, que fica geograficamente longe, sairá perdendo?
Morris: A distância geográfica será cada vez menos importante. À medida que o espaço físico vai cedendo em direção ao espaço digital, a geografia adquire outro significado. Já se disse que o mundo ficou plano, o que é obviamente um exagero. Ainda faz uma tremenda diferença nascer em Cambridge ou em Kinshasa. Mas o espaço cibernético está claramente mudando o antigo significado das grandes distâncias.
Petry: O senhor previu que, mantido o passo atual, a Ásia superará o Ocidente em 2103. Um mundo sob o domínio da China será muito diferente do mundo sob a supremacia americana?
Morris: Alguns cientistas políticos dizem que a China, ao se tornar mais importante, ficará mais parecida com um poder tradicional. Os EUA, no século XIX, gostavam de ver a si mesmos como um país diferente de todos os outros, mas, depois da II Guerra, quando começaram a ascender, ficaram parecidos com um poder tradicional. Empurrados para situações moralmente ambíguas, fizeram o que todo grande poder faz: apoiaram ditaduras repulsivas e líderes cujos valores são perfeitamente antagônicos aos valores americanos. É difícil dizer o que vai acontecer com a China, mas o comportamento do país na região sob sua influência direta, o Leste Asiático, já tem semelhanças com o relacionamento dos EUA com a Europa e a América Latina. Os EUA procuram administrar seu império mundial sem administrar diretamente os países. Preferem trabalhar com aliados a trabalhar com súditos. Creio que a China, apesar da cultura milenar e do jeito próprio de pensar e agir, fará algo semelhante.
Petry: Os momentos mais terríveis na história da humanidade são causados pela chegada do que o senhor chamou de "cinco cavaleiros do Apocalipse": migração, doença, fome, falência do estado e mudança climática. Qual deles é o mais perigoso hoje?
Morris: A resposta fácil seria dizer que não podemos fazer distinções, pois o que os transforma em "cavaleiros do Apocalipse" é o fato de aparecerem juntos. Há períodos históricos em que um ou outro surgiu, com efeitos desastrosos, mas sem provocar um colapso. Nos colapsos, eles estão juntos. É o caso da queda do Império Romano, da dinastia Han na China, da dizimação dos nativos das Américas com a colonização europeia. Mas, em geral, um dos cavaleiros deflagra o processo. No Império Romano, eu diria que tudo teve início com as doenças. No século XXI, minha aposta é que, se tivermos um colapso, ele começará com a mudança climática. O aquecimento global em si não é um desafio insuperável. Podemos nos adaptar ao pior cenário, que prevê elevação de 5 graus em algumas décadas. É um aumento enorme, mas não varrerá a humanidade do planeta. O colapso virá se o aquecimento global abrir a porta para os demais cavaleiros do Apocalipse.
Petry: De 1 a 10, qual o risco de um colapso mundial?
Morris: Inferior a 5. Com a globalização, nossos maiores problemas passaram a operar em escala global. A mudança climática, o terrorismo, os desequilíbrios comerciais, nada disso afeta apenas um país. O problema é que estamos enfrentando a nova realidade com instituições anacrônicas, de 200 anos atrás. A mais poderosa de todas segue sendo o velho estado-nação. É ele que detém armas nucleares, não as Nações Unidas. Quando a economia mundial começou a ir para o ralo em 2008, a ajuda não veio do FMI. Veio dos governos nacionais. Mas os governos nacionais ainda não aprenderam a superar as preocupações locais. O fracasso da conferência ambiental de Copenhague, em 2009, é um retrato disso.
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