A Questão do Índio...
Na realidade o que entendo disto? Só que não ser
especialista não me impede de opinar, ou de querer dizer o que para mim o que
isso significa. Espero deixar claros os limites de meu entendimento, o que não
significa que não tenha plena confiança na honestidade, ou sinceridade daquilo
que estou tentando dizer e pensar por intermédio desses símbolos, significados,
significantes.
A indagação começou na mesa de almoço, alguma tia velha
tinha falado que era contra os índios, demos risada, claro, do modo simplório
de colocar o assunto, da impossibilidade de se ser “contra índio” de qualquer
modo que se quisesse ser contra...
Entretanto me chamou a atenção de como de um modo ou de
outro, no fundo, somos “contra índio”. Mesmo sem querer ou nos dar conta disso.
O assunto prosseguiu com minha irmã e seu genro tentando colocar a velha
questão de que os índios são tutelados e que o correto seria que eles fossem
cidadãos, como todos os brasileiros. Afinal seria bom também ser protegido e
resguardado assim como eles. Afinal nós como descendentes de imigrantes não
tínhamos toda essa proteção dada aos índios, afinal os índios que querem apito
e computador e remédios como nós não podem ser deixados de fora. E por aí vai.
Confesso que já fui partidário de opinião na mesma linha,
achando que estariam melhores os índios se fossem assim incorporados na
sociedade brasileira. Com direitos iguais a cidadãos plenos, com reconhecimento
de sua maturidade e autonomia individuais, com responsabilidades. Não seria
mais fácil se preservar sua cultura, sua “indigineidade”, seus conhecimentos...
Não lhes desonraria ser tratados como crianças, e guardados em reservas?
A ideia não tinha mais elaboração em mim que isso, nem tinha
eu compreensão de outras perspectivas, perspectivas que por inferência imagino
que informem as politicas de reservacionismo, e de tutelagem. Não as vejo mais
tão negativamente, e tento ao meu modo conceber suas razões centrais.
A conversa prosseguiu e enquanto mais se argumentava mais me
dei conta da extensão e complexidade, mais me dei conta da minha ignorância e
de quanto no fundo gostaria(mos) que alguém resolvesse o assunto. Por outro
lado mais vejo como é algo assim insolúvel, uma questão estrutural profunda,
muito mais ampla que a mera preservação desta ou daquela frágil e fugaz
cultura, muito central para nossa própria preservação existencial na 3ª esfera
depois do sol... Contra Índio, Contra Terra, Contra....
A busca de soluções é própria de nossa cultura, assim como as
neuroses. O paraíso distante, estanque e futuro, a paz das coisas resolvidas e
explicadas, nos mistificam e nos enganam a cada virada, a cada esquina aonde o
mundo se descortina nascente, morrente e transitório.
Imagino que:
Peguei o índio e lhe dei um RG, carimbei seu nada consta, e
o tabelião lhe deu um registro duma terrinha. O relógio marcou todos esses
momentos e a sua história foi lavrada num papel, sua foto foi tirada de vários
ângulos, sua existência comprovada (e contestada) por diversos meios. Um
emprego, uma demissão, apito pra entrar, não mais o de fazer música, espelho
pra ver se ainda era o mesmo, ou se já estava velho demais pra ser alguém útil
(produtivo). Gravei sua história num gravador, aquelas que eram contadas na
fogueira, ou em alguma beira de rio, estão todas em fitas cassete (meio
mofadas) arquivadas em alguma prateleira do arquivo nacional, junto dumas
máscaras de palha esquisitas. A cultura deles foi preservada, assim eles não
precisam mais ser índios, podem ser cidadãos assim como nós... Podemos acabar
com essa coisa e prosseguir com a História. E o índio e seus colegas nessa
anedota são incorporados como tripulação duma nau que nem sabe mais aonde vai,
capitaneada por (G) 7 homens loucos parece querer se precipitar a todo vapor
borda do mundo afora, num vazio interminável e escuro.
O mundo continua chato, só perdemos visão dos seus limites,
o mundo para nós continua pequeno e frágil, pois separados dele somos pequenos
e frágeis nesse cosmos enorme. Seria bom entender o que é ser índio, como ser
índio, e preservar o mundo inteiro como reserva.
Alguns herdeiros da história, por exemplo, nós aqui lendo e
escrevendo e fazendo nosso sentido moderno e pós-moderno disso tudo, podemos
crer que esse assunto não é nosso. Que a questão pode ser bem resolvida deste
ou daquele modo, para mim é um pouco maior. Só que sinto agora que vejo mais
facetas desse assunto uma grande dificuldade de trata-las de modo apenas
linear, dicotômico, ideológico. Não é um problema que precise solução, não é
nem mesmo uma questão que precise de resposta, é algo mais fundo e mais central
e mais fundamental para a continuidade humana nesse planeta.
Minha irmã, por exemplo, (e a cito apenas como personagem
genérico), entende que não tem uma divida histórica com a invasão da América, e
ela não disse, mas pode se elaborar mais ainda e dizer que não há daí (para
semelhante individuo genérico) divida histórica com a escravidão e etc. Ora de
fato, somos aqui em minha família, principalmente descendentes de imigrantes,
chegamos depois do circo armado, por assim dizer, e como os índios ou como os
negros, podemos crer (mesmo que menos justificados) que também fomos explorados
e enganados. Ou poderíamos imaginar que somos isentos de relação ou
responsabilidade por termos chegado noutro tempo histórico, pois sem saber se
houve ou não direta escolha das condições em que nascemos temos que crer que
não houve. Só que existe ai um sério engano, ainda que a ideia de uma divida
histórica não se aplique, ou de um karma coletivo, ou qualquer coisa do gênero.
A cultura da qual somos herdeiros, imigrantes, não é em nada dissemelhante da
cultura que se encontrou aqui. É a mesma, nossas famílias contavam histórias,
escreviam e liam, entendiam e achavam lógica e coisa da vida a culpa, o
trabalho, a propriedade, a apropriação, a identidade, a responsabilidade social
e o papel social, e por ai vai. Interface automática, plug and play, nosso
sistema operacional entendia e vicejava sob essas condições, ao menos era
compatível. Nosso deus era o mesmo. Gavetas, portas e prateleiras, botões,
penicos e abotoaduras, golas, fivelas, assinatura, nada dissemelhante, apenas
deslocado, talvez um pouco sacudido, mas com um pouco de suor e esforço, com um
pouco de trabalho e disciplina, e previdência, as coisas iriam melhorar. Tijolos
e telhas, heranças e tulhas...
Mas o índio, pobre e caricato, hoje dá flechada no BNDES,
como não extingui-lo apenas por lhe dizer bom dia, vai aí um crucifixo, um
espelho e um pouco de varíola?
Mas o índio rico e digno, mais digno que ou tão quanto qualquer
ministro ou gerente de fundos de aplicação, como não precisar de raízes
profundas como as dele na terra que nos sustenta. Como não precisar de uma
identidade natural e espontânea, como prescindir de uma pureza inocente e
saudável nesse estado de coisas sem rumo?
Pois ele, índio, não me pediu, ou necessitava nos 1500, que
fosse incorporado com certidão de nascimento e propriedade, e talvez hoje nós
(os herdeiros e contadores da historia empapelada) estejamos tão imensamente
grandes e desajeitados que não se possa mesmo mais se ter o luxo dum espaço
pristino e natural. Alguns pensam que as reservas são zoológicos de gente (não
é tão simples assim). Talvez qualquer movimento que se faça para salvar acabe
apenas matando a frágil e tênue essência do que é ser índio, daí a necessidade
de uma redescoberta, de um reencontro. Talvez em nossa cultura dominante não
exista no “topo” nada que seja compatível, e muito que é essencialmente
antagônico, e “contra índio”. E daí se tira, contra negro, contra mulher,
contra criança.
Eu ouvi dizer que índio não tem neurose, ou patologia, ou
doença mental, ao menos nada nem perto do que temos aqui no topo de nossas
individualidades históricas que esforçadamente acumulam e protegem espaços e
satisfazem ambições e desejos.
Desculpe, se eu não sei cutucar sua mente ou alma com um
ensaio muito arrumado, com um estilo muito coerente. Desculpe se eu vou te
descrevendo o que passa em minha mente enquanto vou tateando nessas impressões.
É o único recurso que tenho pra compartilhar o meu desejo do que seria me
tornar realmente um ser inteiro, um índio do mundo, enraizado na terra e
frutificando generosamente um futuro.
A única reserva que posso oferecer aos outros índios é um
espaço de respeito em meu coração, é um traço de eternidade em meus gestos, é
uma rizada quando digo o meu nome revelando a brincadeira que é ser alguém, o
quanto é mágico, e ilusório, se dar um nome. A única riqueza que posso ter é a
que ofereço e a única terra, a que compartilho.
Será possível a cura para esse “mundo” nosso, será possível
mudarmos visão e gesto, não para regredir a um estado primitivo, mas para
vivermos plenamente a promessa do que é ser humano, com todas as melhores
qualidades, com o coração cheio e o futuro aberto e luminoso? Será possível eu
ouvir o canto aborígene e simplesmente entender que ele nos projeta às
estrelas, que ele nos oferece o Universo?
Mais, muito mais por vir...
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