sexta-feira, julho 22, 2011

A Escolha da Ponte




Onde está a ponte entre nossas melhores aspirações e o “mundo real”. Parece que não pertencemos a esse mundo, brigamos com ele constantemente ao extrair dele nossa subsistência, entretanto também parecemos não pertencer ao mundo das nossas melhores aspirações, visto que muitas vezes nos sentimos em conflito ao não conseguir esboça-las nem nos menores gestos. Incoerentes, incoerentes com a força de vida que nos anima, incoerentes com o que às vezes vemos, de que todos somos um...

Entretanto também “incoerente” é a luz difusa do sol que nos ilumina, deixando sombras às vezes macias, às vezes agudas, mas uma luz intensa que reflete em toda a parte e vem iluminar mesmo aquilo que está por trás. Uma luz que busca superar a limitação natural da luz de ser sempre reta, e reboteia nos cantos pra retornar e iluminar o lugar escuro. Incoerente essa luz, que ao invés de ir embora ao espaço insiste em ficar mais um pouco e nos aquecer, nos espelhos e labirintos de nossas delusões.

Acordo com meu coração apertado, ontem vi mais uma vez o dilema impossível de ser um arquipélago de solidão, onde mora um desejo de juntar as partes e se tornar terra inteira.

Mas não era exatamente assim que eu queria entrar por essas idéias...

Essa manhã Ana acordou chorosa, discutimos ontem, a briga de casal mais boba no meio duma festa de ideais elevados, o dia final do ciclo de diálogos pela educação e pela paz, que tínhamos ido assistir no Rio. Talvez essa seja a metáfora perfeita, sei lá, pra mostrar como tantas e tantas vezes nossas ideias tentam ir numa direção, mas nossas ações e até palavras vão mesmo é pra outro lado... Claro que existem, ou podem existir, razões complementares para a melancolia da Ana, isso me alivia de ser a fonte de toda a sua tristeza nesse momento.

Penso que talvez a razão de termos nos bicado feito periquitos apertados na mesma gaiola possa ser, no fundo, a mesma sensação de não pertencer. De não pertencer àquilo, de não saber o que fazer com aquilo, de ter a cabeça doendo com a dificuldade de conciliar as abstrações mais fantásticas com a realidade de nosso pequeno mundo de casal. Nossa vida doméstica, entre o ruído da geladeira que sempre pede o mercado, e a rotina dos dias que os faz iguais, e que faz o tempo escorrer das mãos sem aquele registro incomum que faz o ritmo da vida ficar mais colorido, mais memorável.

Diante de um Lama, dum Pastor, dum Pedagogo, duma Educadora, e de outra Educadora, dum Catedrático, de uma Santidade Tibetana, nossa vida se apequena, e se revela. Diante do zoom sideral e do microscópio que suas visões nos proporcionam o espaço do meio se revela faltando, carente, desconectado. Uma parte de nós se desmonta frágil, e não sabemos ou não vemos por que recompor, ou refazer...

É uma consciência que vem acachapante, excessiva, incompatível, exigente... incoerente com o que é o nosso normal. Difícil vibrar com suas ondas largas, tsunamicas. Difícil se sentir índio nessa floresta aonde não conheço nenhuma planta ou bicho. Dói se sentir humano e no entanto não se sentir herdeiro da vida, na verdade dói se sentir incompatível com a sustentação da vida e da felicidade. Como se fossemos seres amargos demais, seres errados e velhos demais, um desvio infeliz que a vida tomou que a tornou impar dela mesma... Um casal que briga... Uma melancólica ponte partida sem ninguém para reconstruir.

Entre o céu e o inferno fiz a minha casa, os tijolos dela me protegem e me oprimem, lá me elevo e me crucifico, lá eu amo e cometo violências. Incoerente meu pulso tortura a vida e não se afina, não se afilia e se sente de ponta a ponta incompatível, alienígena, estrangeiro. É de novo a velha história do pecado original, só que dessa vez não é por que ninguém me disse, é por que me dói no peito esse desajeitamento de lidar com a vida, por que o meu amargo já desceu pelas artérias até a ponta dos dedos, e quando toca a existência, a faz sub existência, arrancando suas joias pra um baú escuro, guardando flores secas em alfarrábios empoeirados, montando bibliotecas enormes duma historia natural que eu mesmo assassinei...

Trágico, exagerado, excessivo? Fica a advertência que minha pecha e um fascínio pelas frases de efeito... não significa sabedoria, que o meu excesso de perguntas pode não levar à pergunta fundamental ou à reflexão importante, que essas reticencias que insinuam que compartilhamos um segredo podem não ser nada mais que apenas minha falta de resposta. O que não me impede de continuar mais um pouco.

As questões são tão grandes, tão maiores que o sofá da sala, que a mesa e as cadeiras, que as lâmpadas queimadas. Minhas mãos parecem não conseguir tocar, e a clausura de ser esse humano parece a cada minuto mais se fechar, pra ser tão errado talvez fosse melhor não existir. Tola vaidade achar que posso “não existir” pra resolver a equação da dor e disparate.

Por outro lado simplesmente existir, na confiança e na gratidão que isso, mesmo a dor, se mantem por compaixão... difícil. Simplesmente existir na fé que do seio da vida emergirá uma nova força inusitada, apesar da loucura dos tempos, e que as arvores enormes de nossos enganos tombarão cedendo lugar a outras de frutos mais jovens, mais vitais e suculentos. É possível que isso seja assim mesmo, que dessa era que se vai não surja o profeta ou a visão que explique o fim de si mesma. Ela, era, simplesmente se vai, seus sistemas e órgãos falem, seu corpo enorme apodrece e fermenta, aduba raízes sem nenhum valor, plantas sem nenhuma chance, as ultimas mais fraquinhas... permanecem.

Pode ser que o mundo acabe, mas como disse o Lama, o problema é com o Samsara. O Mundo surge no olhar. Pode ser que o mundo continue, e o que vem de bom cresça em igual proporção com o que vem “de ruim”, é só mais roda, é só mais giro. Não se sabe se os que residiam aqui eram mesmo mais felizes, a gente só imagina. Ou mesmo se todo dia era, era mesmo dia de índio. E o mesmo que desceu da espaçonave, pode ter nela retornado pro seu Olimpo indígena. Ficamos aqui com os cacos e impressões, com os sonhos do que é ser da terra, com a terra. Com os sonhos do que é ser uma família humana vivendo num paraíso de dádivas, com os sonhos do que é ser pacifico e bom, com os sonhos de que em algum lugar e em algum tempo já foi possível pensar num amanhã, ou no mínimo aguarda-lo com segurança tranquila, com fé, com confiança... Só que esses seres ideais, dessa sociedade ideal, não nos deixaram escritos ou ideias, penso comigo que eles os que viveram como índios antes de nós foram uma ainda ingênua proto-experiencia dum porvir possível, dum humano possível. Massacrados pelo nosso trator moderno, não deixam a receita de ser como foram, deixam em nós a saudade de quem seriam se os fossemos, hoje, filhos e herdeiros.

Não podemos traduzir os seus textos, só podemos contata-los num espaço sutil e ouvir suas vozes como música da própria terra. Como podemos habitar essas almas como podemos resgatar essa humanidade perdida, e renascer, resignificar o futuro? Como podemos seduzir e acolher cada um dos bilhões de humanos, um a um na trama de sua herança viva numa nação da Terra? Não sei se minha alma reencarna, isso pode nem ser importante, creio no entanto que o sonho da vida se reencarna constantemente, e explora as múltiplas possibilidades abertas a vida e ao bem. As condições auspiciosas que criamos e que deixamos permitem que a vida encontre essas avenidas, e possivelmente se recorde de nós com saudade também. Se essa fosse a Bossa Nova, se esse Chorinho chorasse por isso, se o batuque dos atabaques e do Kuarup nos acordassem para esse mesmo coração, essa seria a contribuição do ser brasileiro nos destinos da terra, muito mais que chegar a Marte, chegar à Vida.

Busco, ou quero... rogo, encontrar a amplidão dum espaço antes e além de toda a separatividade, por ouvir Deus soando compassivo e poderoso na canção da vida para colocar a imensidão dentro do gesto menor. Para em cada ato conseguir traçar nos três tempos o acolhimento da inocência, o perdão da dor e da tragédia, a aceitação do doce e do amargo da vida, o estar inteiro num corpo que vive e morre que dói e goza. Estreito sendo amplo para tecer uma existência plena, educada e lapidada, numa sociedade global e múltipla, aonde Budismo significa um anseio coletivo pela lucidez, pela plenitude da liberdade na manifestação da vida. Aonde viver significa optar pela felicidade.

Guga Casari

Petropolis 22 de julho de 2011

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